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Sexta-feira, Março 21, 2025

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Entrevista com Dom João V, por Galopim de Carvalho

Estava eu na capela mor da basílica do Palácio Nacional de Mafra, a admirar uma belíssima tela de Francesco Trevasani, com representação da Virgem, o Menino e Santo António, foi com surpresa que vi surgir uma figura delicada, envolta numa armadura de aço cinzento e luzidio, novinha em folha, mais consentânea com as salas de um museu do que com os campos de peleja.

O rosto, demasiado belo, um tanto feminino, e a farta cabeleira, ao estilo do Rei-Sol dos franceses, também não prefiguravam a imagem do guerreiro.

Numa passada de figurante da alta nobreza, num teatro do século XVIII, esta aparição aproximou-se, confiante e sorridente. Convidou-me a acompanhá-lo, conduzindo-me para uma das seis capelas laterais cujos retábulos, de rara beleza, são da autoria de Alessandro Giusti e seus discípulos, da oficina de escultura de Mafra. Aí, sem ninguém por perto, abriu-se-me:

  • O meu nome completo é João Francisco António José Bento Bernardo de Bragança. Nasci em 1689, no Paço da Ribeira, em Lisboa, e deixei a condição terrena em 1750. Fui o 24.º monarca deste País.
  • Tendo falecido o meu irmão mais velho e herdeiro do trono, tinha eu um mês, fui, de imediato, proclamado príncipe herdeiro e, por morte de meu pai, D. Pedro II, subi ao trono no primeiro dia do ano da graça de 1706. Reinei durante três décadas e meia.
  • A governação dos meus últimos oito anos de vida foi assegurada por minha esposa, a Rainha Dona Maria Ana de Neuburgo, austríaca de nascimento, mas senhora de grande devoção a Portugal.
  • Aconteceu que, por motivo de grave enfermidade, fiquei impossibilitado de assegurar os destinos do reino. Foi um tempo que, do mal, o menos, aproveitei para ler e reflectir sobre os mais variados temas.

À minha frente, estava ali a memória de D. João V, o Magnânimo, envolta naquela imagem andrógina que todos conhecemos, da pintura do italiano Pompeo Batoni, estampada nos nossos manuais escolares de História de Portugal.

  • É uma honra encontrar-vos aqui, neste espaço que haveis fruído em vida.
  • Esta grande e bela basílica, mandada erigir por mim, foi edificada entre 1717 e 1730. Podemos dizer que é uma obra de referência do meu reinado.
  • Foi Inspirada nas grandes igrejas de Roma, numa concepção arquitectónica patente no barroco italiano, num estilo que se difundiu, entre nós, classificado de joanino.
  • Foi construída com base num desenho do alemão, Johnn Friedrich Ludwing, com longa carreira em Itália, e tem, como pedras de cantaria e estatuária, sobretudo, os diversos tipos de lioz de Pero Pinheiro.
  • Eu conheço razoavelmente bem, não só esta bela igreja, como o Palácio Real, o Convento, a magnífica Biblioteca, o Jardim do Cerco e uma vasta tapada, num magnífico conjunto inscrito na Lista do Património Mundial pela UNESCO, em 2019.
  • Fostes o mandante desta preciosidade, mas não sei se sabeis, que é o maior monumento nacional português, com mais de 1200 hectares classificados.
  • Neste colossal conjunto destaca-se uma das mais importantes bibliotecas iluministas da Europa, hoje é conhecida por Biblioteca Joanina, com cerca de 30.000 volumes.
  • Sei. E sei praticamente tudo sobre esta que é a minha gloriosa obra deixada aos que se me sucederam. Sabeis vós que as torres sineiras da Basílica comportam um dos maiores conjuntos sineiros do mundo, constituído por dois carrilhões com um total de 98 sinos?
  • Sei muito bem e sei que, no interior da capela real, há seis magníficos órgãos, instalados entre 1792 e 1807, restaurados em 2010.
  • Como sabeis, o meu reinado foi marcado pela riqueza, pelo que pude dar-me ao luxo de todas esta e muitas outras realizações.
  • A História diz que fostes senhor de vastos conhecimentos, invulgares no vosso tempo. Que fostes educado por padres de grande saber, da Companhia de Jesus, que domináveis várias línguas europeias e que fostes senhor de vasta cultura. Diz ainda que haveis acarinhado o teatro e a música.
  • Na intensa preparação que me foi dispensada durante as minhas infância e adolescência, além desses eclesiásticos, não deve ignorar-se o papel importante de minha mãe, Dona Maria Sofia, que soube transmitir aos fil
  • os, não só o seu gosto pelas artes e pelas letras, como toda a sua religiosidade, iniciando-nos, muito cedo, nas boas práticas da Igreja Católica Romana.

– Diz a História que o Papa Bento XIV vos distinguiu como Rei Fidelíssimo.

  • Essa distinção, transmissível aos meus sucessores, diga-se, não se deveu apenas à minha condição de fiel cumpridor dos ensinamentos da Igreja. Deveu-se, sobretudo, às enormíssimas somas que, ao longo do meu reinado, doei ao Vaticano. A gratidão de Sua Santidade manifestou-se, ainda, ao elevar Lisboa à dignidade de patriarcado, à semelhança de Roma e de Veneza.
  • É por isso que Lisboa é patriarcal e que o nosso cardeal ostenta a distinção de patriarca?
  • Exactamente. A cerimónia da minha aclamação foi grandiosa. Direi mesmo que foi única no espaço europeu. Mostrou aos portugueses de todas as classes, da nobreza ao povo, passando pelo clero, e às diversas coroas estrangeiras, através dos seus embaixadores e de numerosos convidados, o halo de veneração que, como rei absoluto, pretendi cobrir a realeza, em geral, e a minha pessoa, em particular, num nível de esplendor nunca visto.
  • Eram o ouro e os diamantes do Brasil a suportarem todo esse fausto. É, pelo menos, o que reza a história.
  • Além disso, havia ainda o comércio do açúcar, do tabaco, do vinho e do sal que nos davam grandes lucros.
  • Mas também consta que havia fome entre o povo. Diz-se até que uma das vossas primeiras medidas foi lançar impostos sobre um povo empobrecido, e que o fizestes sem consultar as cortes.
  • Foi verdade. Os tempos eram outros. O respeito pelos direitos humanos estava longe de impor a protecção dos mais fracos.
  • Mas isso ainda é uma realidade do presente em muitas sociedades deste mundo e, mesmo aqui, em Portugal, nos dias de hoje
  • É verdade. Concordo. Mas no meu tempo, o povo era demasiadamente explorado pela nobreza, pelo clero, pelos comerciantes ricos, pelos poderosos, em suma. Não só explorados, como torturados e, não raras vezes, levados à mão do carrasco, em verdadeiros espectáculos públicos, presenciados por multidões ululantes do mesmo povo ignorante da sua miserável condição de inferioridade sem remédio. Como hoje, o sofrimento do povo não chegava aos salões.

– Os vossos salões, considerados entre os mais ricos da Europa, eram marcados pelo fausto, pelo prazer e a pela alegria de viver.

  • É verdade. Havia graça, elegância, sedução e intriga. Muitas das conversas iam dar à secretamente invejada Madame Pompadour, a favorita e amante de Luís XV, e à sua grande influência nas decisões do monarca. Flanava-se, cortejavam-se as damas, fossem elas solteiras ou casadas.
  • Consoante o estado do tempo, faziam-se jogos nos jardins ou nos salões. Assistia-se a representações teatrais, ouvia-se música e dizia-se poesia. Dançava-se a pavana e o minuete ao som do violino ou do cravo.
  • Falava-se de ópera e de touradas, dois espectáculos muito frequentados e apreciados pela nobreza. Davam-se grandes banquetes, bebia-se café ou chocolate, duas novidades na época, e consumia-se um tipo de tabaco moído, conhecido por rapé.
Basílica de Mafra

– E havia maledicência.

  • Isso era o pão-nosso de cada dia. A maioria dos homens da corte, com o conde de Ferreira à cabeça, defendia o galanteio e a plena e aberta convivência com as damas. Destoava desta prática o devoto e taciturno conde de Vimioso.
  • Libidinoso e devasso no mais fundo e escondido do seu ser, este homem, sempre azedo e formalista, pregava o recato e apontava a mulher como o fruto do pecado. Não lhe dando ouvidos, permiti essa abertura de convívio entre os dois sexos, o que me valeu ser acusado de estar a estrangeirar o país.

– Mas estais a falar como um republicano e democrata do presente.

  • Certamente que já sabeis que as almas têm a faculdade de acompanhar a história que se seguiu à sua passagem pela Terra e, porque as almas, despidas dos interesses terrenos, são puras, evoluem nas ideias a caminho da perfeição. Assim, eu, com conhecimento de causa, tornei-me, talvez, o mais qualificado crítico de mim próprio, do meu reinado e de muitos outros.
  • Segui com toda a atenção a Revolução Liberal que pôs ponto final ao absolutismo e aprendi muita coisa. Acompanhei o fim da monarquia, em 1910, vi o que de bom e de mau nos trouxe a República e aprendi mais um pouco.
  • – Assisti à Revolução dos Cravos, à morte súbita de um Estado Novo apodrecido e, imaginai, rejubilei. E aprendi ainda mais. Hoje estou do lado dos oprimidos contra os opressores que, infelizmente, ainda os há neste torrão que tendo, embora, conquistado a liberdade, demora a encontrar o caminho da igualdade e da fraternidade.

– Dir-se-á, mesmo, que sois um republicano.

  • Na medida em que deixei de acreditar no direito hereditário ao poder e na bênção divina conferida ao monarca, na medida em que conheci de perto as cumplicidades entre o trono e o altar e que deploro a vénia subserviente e o beija-mão, sou hoje mais republicano do que monárquico.
  • Como escreveu Barroco Esperança, por ocasião do Centenário da implantação da República, esta forma de regime “é o berço da democracia, o lugar da igualdade de género onde desaparecem privilégios de raça, nascimento ou religião, onde se aceitam todas as crenças e descrenças, onde o livre-pensamento, a laicidade e a liberdade de expressão definem a matriz genética do regime”.

– Depois de tudo o que me foi dado aprender na chamada vida eterna, é mesmo isso que eu sinto.

  • Eu li essa crónica desse arguto observador da sociedade, que termina dizendo que ser republicano é “um acto de cidadania que tem a ética como baliza e a Liberdade, Igualdade e Fraternidade como divisa, projecto e ambição”. Mas nada deste meu sentir tem alguma eficácia. Tenho toda a capacidade de observar e reflectir, mas não tenho qualquer capacidade de intervir. Não passo de um pensamento.
  • De qualquer maneira, é reconfortante ouvir-vos falar.
  • Toda a gente sabe que governei como rei absoluto, sem convocar cortes, concentrando em mim o poder legislativo, fazendo as leis, exercendo o poder executivo, mandando executá-las, e o poder judicial, julgando a meu bel-prazer qualquer um que caísse nas malhas da justiça. Ai, se eu soubesse o que sei hoje…
  • Faríeis o mesmo que fazem os poderosos republicanos de hoje. Mais de 1 600 000 portugueses vivem abaixo do limiar da pobreza.
  • Talvez, se voltasse a ter existência material, terrena. Posso acreditar que essa insensibilidade face ao sofrimento do próximo, faz parte da condição humana. Mas deixemos essa desgraças e mudemos de assunto.

Conheceis a capela de São João Baptista, no largo Trindade Coelho, em Lisboa?

  • Já a visitei e encantaram-me as pedrarias usadas na sua decoração. Toda ela espelha o que foi a vossa maneira de estar neste mundo. Que eu me lembre há ali, em quantidade, lápis-lazuli, jaspe, ametista e cristal-de-rocha.
  • Na antiga casa professa de São Roque, então igreja dos inacianos, era imenso o contraste entre o luxo ostentado pela generalidade das capelas e o aspecto miserável da dedicada a São João Baptista.
  • O santo tinha o meu nome, era o meu patrono e, assim, decidi fazer dessa capela uma peça de riqueza e beleza à altura do meu poder. Ordenei que se tomassem medidas dela e que as mesmas fossem enviadas aos mais conceituados arquitectos de Roma, considerados, então, os expoentes máximos do barroco europeu.
  • E isso com que intenção?
  • Para que projectassem e construíssem a mais rica e a mais sublime capela da cristandade. Os arquitectos escolhidos acabaram por ser os italianos Nicola Salvi e Luigi Vanvitelli. Esta magnífica obra de arte foi montada provisoriamente em Roma, visitada e abençoada por Sua Santidade, o Papa Benedito XIV.
  • Logo de seguida, a capela foi desmontada, acondicionada e transportada para Lisboa, onde foi, por fim, montada definitivamente no devido local e aberta ao culto, já eu não estava entre os vivos. Devolvi o meu pobre corpo à terra seis meses antes de poder presidir à sua inauguração, privando-me desse enorme prazer. Mas assisti, claro, do lado de cá deste outro mundo que hás de conhecer um dia.

– Qualquer pessoa vê que é uma obra riquíssima.

– De um modestíssimo reduto devocional, converti-a na preciosa joia que dignificou o santo meu onomástico e canalizou para mim entusiásticos elogios de uns e a pura inveja de outros, nas mais diversas cortes da Europa.

  • A colossal fortuna que despendi nesta capela abalou consideravelmente a fazenda, cuja riqueza já não era o que alguns julgavam. Eu estava a par da situação, mas o que eu mais pretendia era elevar a corte de Lisboa a um cenário à altura da minha ambição e ao serviço de um programa político de exaltação da coroa portuguesa, a nível internacional.

– Felizmente, a igreja e a capela sobreviveram ao Terramoto de 1757. Felizmente!

  • Não sei se sabeis que Sousa Viterbo, historiador, arqueólogo e jornalista portuense do século XIX e começos do XX, dedicou um notável estudo histórico a esta opulenta obra e à sua fabulosa colecção de alfaias.
  • Sei, sim. O tempo que eu vivi, a educação social e política que os meus ascendentes e eu recebemos era a do poder absoluto do monarca, divinamente concedido. Fui educado a fazer incidir sobre mim o halo de veneração com que o absolutismo cobria a realeza. Vejo que os tempos de hoje são incomparavelmente melhores.
  • Mas reparai que continua a haver os muito ricos e poderosos, sendo, como vistes e em número crescente e alarmante os que vivem abaixo do limiar de pobreza.
  • A República trocou o Vossa Alteza e o Vossa Majestade pelo Vossa Excelência. Manteve os Digníssimos, os Meritíssimos, os Magníficos, os Reverendíssimos, as Eminências e as Santidades, mas continua a não completar aquilo por que lutaram os que puseram fim ao “Ancien Regime” e, além da Liberdade, também proclamaram, a Igualdade e a Fraternidade.

– Temos a Liberdade e já não é mau.

  • Mas deixai-me continuar. Além da intenção de demonstrar a minha piedade em louvor de São João, pretendi exaltar a dignidade sobrenaturalmente conferida à minha pessoa, como Rei Fidelíssimo.
  • Mas a vossa cultura, incluindo o campo das artes, era, segundo se diz, muito apurada.
  • Com certeza que sim. Minha mãe, além da formação religiosa, incutiu em mim o gosto pelos livros, pela literatura, pelas artes e pela cultura, em geral.
  • E ouvia-se muito boa música nos salões e nas igrejas. Foi o tempo de dois grandes compositores.
  • Um deles foi Händel, grande mestre do Barroco musical europeu. Era alemão pelo nascimento e, já homem feito, naturalizou-se cidadão britânico e fixou-se definitivamente em Londres.
  • Depois de uma brilhante carreira musical na Alemanha e em Itália como compositor e como instrumentista.
  • Sim. Mas foi em Inglaterra, ao serviço do rei Jorge I, que desenvolveu a parte mais importante de sua carreira, como autor de óperas, oratórios e música instrumental.
  • Além da música de Händel, houve outra, de igual brilho, que invadiu a Europa e as cortes desse tempo.
  • Estais a referir-vos a Vivaldi, o sacerdote italiano que compôs centenas de obras, entre concertos, óperas e outras peças musicais. Este era o meu preferido e continuo a ouvi-lo onde quer que esteja a ser interpretado.
  • Diz-se que haveis procurado seguir as pisadas de Luís XIV.

– Isso é bem verdade. No fausto e na ostentação, o Rei-Sol dos franceses foi, de facto, a minha inspiração. Reparo que já passa da uma da tarde e, certamente, querereis procurar um restaurante para almoçar.

– Parece-me uma boa ideia. Poderemos continuar a nossa conversa. E eu tenho algumas questões que gostaria de vos colocar.

  • Eu, como é natural, já não tomo alimentos. As almas libertaram-se dessa e de todas as necessidades fisiológicas. Por outro lado, se eu me sentasse à mesa convosco, a conversar, os outros clientes que, como sabeis, não me podem ver nem ouvir, iam observar-vos a falar e a gesticular sozinho.

D. João tinha toda a razão. Ao verem-me a falar e gesticular sem ninguém à minha frente, as pessoas iriam pensar que eu não estava no meu perfeito juízo.

  • Eu vou num pé e venho no outro. Ficai aqui, que eu vou comprar algo para comer.
  • Ide e escolhei o local que achardes mais adequado à continuação da nossa conversa. – Eu apareço onde quer que vos instaleis.

Procurei um daqueles espaços comerciais sempre abertos, comprei algo para comer e para beber e fui em procura de um recanto suficientemente recatado para poder continuar o interessante diálogo com o simpático e amável monarca.

Tinha interesse em saber um pouco mais sobre algumas figuras que marcaram o nosso século XVIII. Cavaleiro de Oliveira, António José da Silva, Carlos Seixas e o padre Bartolomeu de Gusmão eram algumas das personalidades contemporâneas do monarca citadas no livro de História de Portugal que fora o meu. Ao aproximar-me do local escolhido, já lá estava D. João.

Sentei-me a seu lado e comecei a tirar do saquinho de plástico o que havia comprado. Uma sandes mista, com fiambre, queijo, ovo cozido, alface e rodelas de tomate e, para beber, um sumo de maçã.

  • No meu tempo comia-se de forma diferente. – Começou D. João por dizer.
  • Um grande chefe da casa real, de nome Domingos Rodrigues, publicou em 1732 um livro com as suas receitas, intitulado Arte de Cozinha. Pode aí ver-se o que era a gastronomia ao tempo do meu reinado.
  • Eu tenho esse livro, não na edição original, claro, mas numa reedição da Imprensa Nacional, de 1982.
  • Eram muito faladas as suas iguarias confeccionadas à base de caça, na sequência de grandes caçadas que realizei nesta região, na companhia dos mais ilustres cortesãos.
  • Não vos pareça mal, mas eu sou abertamente contra a caça desportiva. Apenas aceito a caça decorrente da mais primitiva das motivações, ou seja, da necessidade de buscar alimento, como, aliás, é regra no mundo animal, em que há predadores e presas. A caça como desporto é uma agressão estúpida e desnecessária aos nossos pares na biodiversidade.
  • – Tenho-a por uma violência gratuita. O prazer de matar é, em minha opinião, condenável. Quem é que pode dizer que é desporto chegar a uma paisagem natural, como esta, e dispor-se a destruir-lhe o equilíbrio a tiros de caçadeira?

Não muito longe de nós, uma mãe javali passava correndo com meia dúzia de bacorinhos atrás. Eu sorri, encantado por esta manifestação de vida e acho que o rei compreendeu o meu desabafo.

  • No meu tempo só os mais afortunados caçavam por desporto. O povo mais humilde, esse, sim, caçava por necessidade de sobrevivência. E fazia-o sem as armas de que nós dispúnhamos. Usava paus, pedras, armadilhas e muita imaginação.
  • Quando vos propus que continuássemos a nossa conversa, tinha em mente ouvir-vos falar de algumas personalidades, como, por exemplo, do inventor da célebre Passarola.
  • Estais a referir-vos ao Padre jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão!?
  • Exactamente.
  • Este luso-descendente, nascido em Santos, no Brasil e meu contemporâneo, a par da carreira eclesiástica, foi estudioso da física e da matemática que então se fazia e, ainda, inventor internacionalmente conhecido. Concebeu, construiu e pôs no ar, no interior da Casa da Índia, em 1709, o primeiro aeróstato. A história distingue-o como uma das mais importantes figuras da aeronáutica, à escala mundial.
  • E a Passarola, cuja imagem está nos livros de História, que foi feito dela?
  • Consta que, tal como essa imagem a representa, nunca existiu. Essa imagem é uma fantasia desenhada por um aluno do inventor e, ao que se diz, correu a Europa. O que, de facto, ele construiu foi algo muito parecido com os balões de ar quente.
  • Diz-se, também, que o padre Bartolomeu de Gusmão teve problemas com a Inquisição!?
  • Problemas e bem sérios, a ponto de ter fugido para Espanha, onde faleceu novo.
  • Um outro perseguido pela Inquisição foi António José da Silva, o judeu, como ficou conhecido.
  • Foi outro luso-descendente, meu contemporâneo, mas uma quinzena de anos mais novo do que eu. Nasceu no Rio de Janeiro e veio para Portugal, ainda criança, com os pais. Grandemente inspirado no iluminismo irradiado de França, ligou-se aos estrangeirados, designação que então se dava, sobretudo, aos portugueses que haviam andado pela Europa e que haviam regressado com novas ideias por lá adquiridas.
  • – E essas ideias novas, passou-as a escrito.
  • Exacto. Escreveu sátiras sobre a sociedade portuguesa, escreveu comédias, muitas vezes encenadas, e textos para óperas. Duas das suas obras continuam a ser lidas. São elas a “Guerra do Alecrim e da Manjerona” e “Os Encantos de Medeia”.
  • Ele escondia a sua condição de judeu.
  • Evidentemente, com receio de perseguição pelo Santo Ofício. Fazia-se passar por católico, mas houve uma altura em que não pôde mais esconder a sua verdadeira religião. Foi preso, condenado a usar perpetuamente o hábito penitencial, o chamado “sambenito”, e, mais tarde, novamente preso, julgado, garrotado e purificado na fogueira em Auto-de-Fé.

– Houve ainda um outro intelectual perseguido pelo Santo Ofício. Estou a pensar em Cavaleiro de Oliveira.

  • Esse é o nome por que ficou conhecido Francisco Xavier de Oliveira, cavaleiro da Ordem de Cristo. Grande defensor da liberdade, foi um intelectual notável que deixou vasta obra escrita. Viajou pela Europa, onde se converteu ao protestantismo, abjurando o catolicismo.
  • Alguns dos seus opúsculos revelaram-se violentos ataques à Inquisição e toda a sua obra fora proibida por este tenebroso braço da Igreja católica
  • Na impossibilidade de o prender no estrangeiro, onde passou a viver, o Santo Ofício condenou-o à fogueira à revelia; e queimou-lhe a efígie em Auto-de-Fé.
  • – Como muitos portugueses, estou em crer que a Inquisição foi um dos factores do nosso atraso, relativamente aos países da Europa que não tiveram por lá esse tentáculo da Santa Madre Igreja.
  • Outro factor de atraso, podeis crer, foi o Estado Novo.
  • Também é esse o meu sentir. Faz quase meio século que caiu de podre. E por falar em atraso e em Estado Novo, lembrei-me de uma vossa contemporânea, Soror Mariana Alcoforado, a quem foi atribuída a autoria das célebres “Lettres Portugaises”.
  • E lembrei-me dela porque nos últimos anos deste odiado regime, sob o governo de Marcelo Caetano, surgiu nas livrarias “Novas Cartas Portuguesas”, da autoria de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Esta obra, imediatamente proibida pela censura, como imoral, foi retirada das bancas. A história dessa infeliz. Não vos foi estranha!?
  • De maneira nenhuma. Soror Mariana foi freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição em Beja e as cartas em questão, escaldantes de amor; eram dirigidas a um nobre cavaleiro francês, Noel Bouton de Chamilly, conde de Saint-Léger, que aqui lutou durante a Guerra da Restauração, no século XVII. Destinada à vida religiosa, por mera decisão paterna e contra vontade, a sua sorte foi igual à de muitas jovens da época.

– Encerradas em conventos e mosteiros.

  • Mas devo dizer que nesse tempo eram frequentes as relações amorosas entre nobres e freiras dentro dos conventos que, por uma razão ou por outra, estes estavam autorizados a visitar e, aí, em muitos casos, as austeras celas transformavam-se em alcovas de prazer.
  • Eu sei, por experiência própria, não vale a pena ocultá-lo, toda a gente sabia da minha predilecção pelas jovens e belas religiosas e até me chamaram “o feirático”. Dos meus três filhos bastardos, conhecidos por “Meninos de Palhavã”, dois eram filhos de freiras.
  • E uma delas era a tão falada Madre Paula, que ficou na História.
  • A ligação de Mariana Alcoforado com o cavaleiro Chamilly tornou-se conhecida, o escândalo alastrou e, receoso das consequências, o cavaleiro saiu de Portugal.
  • E nunca mais voltou!
  • Foi no sofrimento dessa espera sem fim que a jovem freira escreveu as referidas cartas.
  • Para Teresa Horta, Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, Mariana Alcoforado simboliza o arquétipo da condição feminina portuguesa. As “três Marias”, como ficaram conhecidas as corajosas autoras, foram estupidamente perseguidas pela polícia política do Estado Novo e essa perseguição só teve fim com a queda do regime, em 1974.
  • Boa maneira de darmos por finda a nossa agradável e útil conversa. Havemos de repetir este tão agradável exercício.

Dizendo isto, D. João fez uma alargada vénia, muito ao estilo do século XVIII, e desfez-se em miríades de estrelinhas luminosas que, rapidamente, se apagaram.

(in “Conversas com os Reis de Portugal – Histórias da Terra e dos Homens”, Âncora Editora, 2013)

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