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Segunda-feira, Dezembro 9, 2024

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Jesus tem um par de nádegas!

A poeta Adélia Prado surpreende-nos frequentemente com ideias sobre Deus que revolvem toda noção pré-concebida ou estaticamente consagrada como verdade. Está disponível para avançar na leitura do texto?

A poeta mineira Adélia Prado, que faz da palavra o barro em que parece moldar a sua fé, nos surpreende frequentemente com ideias sobre Deus que revolvem toda noção pré-concebida ou estaticamente consagrada como verdade. No poema “Festa do corpo de Deus”, publicado originalmente no livro Terra de Santa Cruz, a surpresa beira o escândalo no verso “Jesus tem um par de nádegas!”.

O que fazemos com este verso, depois do primeiro movimento que gera em nós? Para alguns, repulsa, para outros, alegria pela ousadia; inquietação, para quase todos. A mim a surpresa gera curiosidade, movimento do pensamento, alegria. Ao mesmo tempo, a inquietação da certeza de muito pouco compreender. É preciso ler e reler o poema, seguir com Adélia para alcançar o que ela nos pede com seu barro feito de vida, fé e ousadia.

A letra do poema nos faz olhar para o corpo de Jesus na cruz. E os olhos acostumados a ver dor e sofrimento se desviam para a nudez do corpo exposto. O corpo de Jesus está nu e é belo – tem um par de nádegas! A poeta ousa permitir que o olhar se torne erótico diante do corpo nu e exposto. E com essa reviravolta nos faz ver o que tem sido feito do corpo, que é nosso, ao longo da história cristã:

          Nisto consiste o crime,

          em fotografar uma mulher gozando

          e dizer: eis a face do pecado.

          Por séculos e séculos

          os demónios porfiaram

          em nos cegar com este embuste.

O corpo se tornou sede do pecado, o gozo se tornou sua face explícita. O gozo da mulher, sua face demoníaca. Aprendemos assim a buscar Deus sem o corpo, como se Deus e corpo fossem realidades antagónicas. Mas Adélia insiste em mostrar: o corpo de Jesus na cruz é belo e erótico. Não porque está na cruz, mas pelo simples fato de lá estar exposto ao nosso olhar. E se o olhar encontra a liberdade de ver o que lá está, vê um corpo nu e eroticamente belo.

Porque Jesus viveu entre nós, com um corpo como o nosso. E porque a salvação da carne pode ser uma face da salvação, palavra/ideia tão cara a todo tipo de pensamento cristão. Jesus viveu como corpo e assim nos mostrou que o corpo é simplesmente a morada que temos, a forma que a vida toma em nós. A carne, inocente porque despida de todo e qualquer acréscimo, é a face do que somos.

                E teu corpo na cruz, suspenso.

                E teu corpo na cruz, sem panos:

                olha para mim.

                Eu te adoro, ó salvador meu

                que apaixonadamente me revelas

                a inocência da carne.

O poema pede a Jesus na cruz: “olha para mim”. E assim aquele a quem olhamos de repente nos olha. E o corpo lá exposto é também o nosso corpo. E aquele corpo inocente e nu, suspenso na cruz, é como o nosso corpo. Jesus nos salva ao expor a inocência da carne que é também a nossa carne.

E assim a poeta revira a percepção do leitor ao fazer da contemplação da cruz a contemplação de uma festa. O nome do poema, “Festa do corpo de Deus”, remete ao lugar da alegria e do compartilhamento da vida. O corpo de Jesus está em festa por nos possibilitar o encontro com o nosso corpo. A inocência ali exposta nos convida para um outro olhar. E esse olhar renovado só pode ser o do amor:

               Expondo-te como um fruto

               nesta árvore de execração

               o que dizes é amor,

               amor de corpo, amor.

O amor se expõe com o corpo de Jesus nu que se oferece como um fruto lá onde se esperava encontrar execração. A reviravolta que nos transporta da execração à festa nos faz ver o amor onde parecia haver apenas dor. O corpo lá está exposto para que nos vejamos nele, e a compaixão que explode em cada um que vê a execração se desdobra em amor que é também amor de corpo.

E, nesse ponto, a escritura de Adélia Prado parece contrariar a tradicional divisão do amor em diferentes formas. Divisão que restringiu Eros ao amor do corpo e Ágape ao amor universal pregado pelo cristianismo.

As formas que damos ao amor – Jesus tem um par de nádegas

A poeta reúne numa só imagem as várias formas que aprendemos a dar ao amor. O amor, para Adélia, é uno, como una é a sua fonte.

O amor exposto pelo corpo de Jesus na cruz é o amor uno que nos vem do Deus que é uno e que nos movimenta através do desejo expresso pelo corpo. Fome e erotismo são unidos na imagem do corpo/fruto.

O corpo de Jesus na cruz, nu e belo, ainda que em dor, nos diz o amor que é também amor de corpo, amor. A festa do corpo a que a imagem do corpo de Deus nos convida é a festa do amor. E não é por acaso que a festa em que Jesus transforma a água em vinho é uma festa de bodas. O amor humano, em todas as suas formas que são apenas faces do mesmo amor, é a experiência que temos da festa anunciada e prometida. Festa do encontro e da fruição. Festa capaz de suportar a dor que fere mas não destrói.

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Por Marília Murta de Almeida –  professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE – in domtotal.com

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O decoro da arte na ousadia da provocação religiosa

Esta provocação de Adélia Prado é muito interessante para quem busca o sentido das coisas e sobretudo os vê com os olhos da alma, sempre maior que o raciocínio ortodoxo de uma leitura clássica e conformista da realidade. A propósito deste texto lembramos que já no século XVI esta visão do corpo e da sua aceitação na linguagem religiosa teve a sua manifestação com Gregor Erhart, renomado mestre entre 1470-1540 que realizou uma encomenda dos Dominicanos de Augsbourg, na Alemanha, para a colocar no interior da igreja de Santa Madalena.

A lenda: da Santa Maria Madalena Alemã

Segundo a lenda, Santa Maria Madalena após evangelizar uma parte da região da Provence (sudeste da França) foi viver como eremita na Gruta de Sainte-Baume, a 35 km de Marselha, vestido apenas com seus longos cabelos dourados.

Gruta e mosteiro de Maria Madalena da Sainte-Baume. Foto: A. Bachellier.

Todos os dias era levada ao céu por uma brigada de anjos para ouvir os coros celestes e depois trazida de volta.

Interior da Gruta da Sante-Beaume (Província). Foto: Wikimedia Commons.
Santa Maria Madalena alemã:

A Santa Maria Madalena alemã foi construída com muita delicadeza num único tronco de madeira de tília (exceção as mãos juntas), num estilo puro e refinado de sublime sutileza, característico da tradição gótica tardia, muito utilizado na região da Suábia, no sudoeste da Alemanha.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Wikimedia Commons.

As curvas do quadril, com suas proporções harmoniosas plenas de um corpo feminino, revela a busca do escultor pela beleza caraterística do Renascimento.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Thierry Ollivier.

A beleza do rosto gentil, com suas características regulares e firmes, acentuada pelo policromo original, foge refinamento da tradição gótica.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Tangopaso.

O genialidade de Gregor Erhart foi interpretar a imagem tradicional do ser sagrado, de uma maneira sem precedentes na escultura.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Thierry Ollivier.

Longe da convenção gótica de uma figura magra e irreal, ele revela curvas femininas, quase ocultas pela cabeleira dourada ondulada e macia, que escorrem por seus ombros fluem sobre o busto e se desdobram nas costas.

A modelagem do corpo, as cavidades suaves dos músculos tensos e fragéis nas partes carnudas, mostra grande sensibilidade.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Thierry Ollivier.

Os pés, a base e a coxa da perna direita foram restauradas nos século XIX, mas com o tempo voltaram apresentar sinais de rachaduras e envelhecimento da madeira.

Santa Maria Madalena alemã
Santa Maria Madalena, de G. Erhart. Louvre. Foto: Tangopaso.

Santa Maria Madalena nua, singular esculpida na escala humana de 1.70 de altura entrou no comércio de arte alemã no século XIX e foi adquirida pelo Museu Louvre, em 1902, do colecionador Siegfried Lämmle (1863-1953).

Tem no seu histórico alguns infortúnios quando foi usada como estátua contra um pilar, o rosto pintado com lágrimas, foi vestida por conservadores da igreja, repintada sem cuidados especiais e durante a 2° Guerra Mundial chegou a ser confiscada pelos nazistas.

Recuperada após guerra, teve sua policromia original restabelecida.

Localização no Louvre

Santa Maria Madalena alemã encontra-se bem escondida, distante do fluxo normal dos turistas da ala Denon, entre-solo (nível -1), sala 169, vitrine 6.

Santa Maria Madalena, ala Denon, nível -1, sala 169, vitrine 6. Museu do Louvre.

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