A crucificação de Jesus Cristo tornou-se um dos símbolos cristãos mais retratados por pintores. Este artigo traz um comentário sobre a pintura de Pablo Picasso realizado em 1930, que nos remete a várias outras imagens.
Artista pouco interessado em pintar motivos religiosos, Picasso pinta uma obra que combina elementos tradicionais, ideias presentes em outras obras de arte, cultura católica e espanhola, e um desejo intenso de abrir novas possibilidades
Segundo historiadores, a partir do século quinto encontramos as primeiras representações do Cristo crucificado.
Mas, será a partir do século doze (1265), com o Crucifixo de Cimabue (se você não conhece, procure uma imagem na internet) que a ideia de representar a dor de Jesus Crucificado, com a cabeça baixa e o corpo contorcido, ganha força e intensidade.
O curioso é que, na arte moderna, gerações de pintores – crentes, agnósticos e ateus – se dedicaram a representar esse símbolo cristão.
Como exemplo de pinturas da crucificação de Jesus, cito os trabalhos de Paul Gauguin (1889), Marc Chagall (1938), Renato Guttuso (1940), Salvador Dali (1954), Agostino de Romanis (1980) e Fernando Botero (2011).
A experiência humana de pintar Cristo
Aqui, mais do que perguntar pelas técnicas e propostas dos vários artistas que pintaram a crucificação de Jesus, interesso-me pela experiência, profundamente humana, de dor, contida neste símbolo.
Os filósofos falam de um fenómeno saturado. Fenómeno na filosofia é aquilo que aparece e que pode ser descrito, narrado e explicado.
Saturado porque alguns fenómenos excedem toda compreensão e aparecem para nós como dom, como algo que não podemos dominar, mas que nos abrem ao excesso próprio da busca pelo sentido.
Seria o evento da crucificação de Jesus, representado no símbolo cristão da cruz, algo que excede nosso entendimento e nos abre ao místico?
Que experiência humana e espiritual está na raiz do desejo de um artista em representar a crucificação de Jesus, uma vez mais, diante de tantas representações existentes?
O que move um artista a dedicar seu tempo para mais esse trabalho pictórico: pintar a crucificação de Jesus?
Entre essas pinturas contemporâneas da crucificação de Jesus não citei uma que, passo agora, brevemente, a comentar. É o trabalho de Pablo Picasso realizado em 1930 (Pablo Picasso, óleo sobre tela – 50×65,5 cm, Musée National Picasso di Parigi).
Mais uma pintura da crucificação de Jesus, novamente de um artista consagrado. Curioso notar que Picasso, pouco interessado em pintar motivos religiosos, pinta uma obra que combina elementos tradicionais, ideias presentes em outras obras de arte, cultura católica e espanhola, e um desejo intenso de abrir novas possibilidades.
Algo como se a arte, a crucificação de Jesus e sua experiência espiritual, experiência de desejo de redenção, excedessem nesta pintura. Tudo é intenso. Tudo é colorido. Tudo é difícil.
Na pintura de Picasso podemos interpretar vários sinais.
O sol e a lua, a esquerda e a direita, representando o dia e a noite, a vida e a morte. A esponja oferecida à Jesus, encharcada em vinagre ao lado da lua no canto superior esquerdo.
Os dois ladrões crucificados com Jesus cada um de um lado. Jesus crucificado ao centro e um monstro como se fosse devorá-lo. Soldados jogando dados para saber com quem ficará a túnica inconsútil de Jesus.
Dom Quixote com uma lança, ou será um simples soldado romano, transpassando o lado de Jesus na cruz. A escada, instrumento místico para se chegar aos céus, apoiada no Cristo crucificado. E, talvez, o próprio Picasso representado no lado direito abaixo do braço de Jesus. O excesso das cores, amarela, vermelha e azul, intensificam a cena.
Para aqueles que acharem a pintura de Picasso estranha, feia e sem sentido; antes de qualquer julgamento, pictórico, religioso ou simplesmente de gosto; percebam que a pintura é uma hiperimagem que nos remete a vários links.
Ela fala de muitas coisas e nos remete a muitas outras imagens. Percebam que a pintura nos aponta para um fenômeno saturado, a crucificação de Jesus conforme as narrativas presentes nos evangelhos, e que, ao falar da dor de Cristo, fala das nossas dores humanas.
Dores humanas que por sua vez, excedem toda compreensão e nos apontam para o caminho do espiritual em nossas vidas.
Por fim, percebem o homem, Pablo Picasso, controverso, genial, humano; que uma vez mais faz de suas tintas e seus pincéis, instrumentos de sua experiência humana, demasiadamente humana, de tocar, à sua maneira, neste ícone da vida cristã: a cruz de Cristo. Leitores e leitoras: sejam bem-vindos ao pós-moderno!
Por Elton Vitoriano Ribeiro SJ – professor e pesquisador no departamento de Filosofia e reitor da FAJE.