back to top
Quarta-feira, Outubro 9, 2024

Novidades

Notícias Relacionadas

O surrealismo em Moledo

Assim me comunico,
assim me louvo,
Formado em terra, húmus, pedra, louro…
E só o ar é alheio, quando,
Boiando nele, vaga, se desprende
Uma folha do corpo, como um pássaro… “

António Pedro
in Casa de Campo

O Surrealismo em Moledo

Refoulement, 1936, Óleo sobre tela, Coleção Fundação Calouste Gulbenkian. (Imagem de entrada)

Por certo mais do que um dramaturgo foi, António Pedro, um homem de teatro, ou poeta de Moledo do Minho? Perfaz em 2021 os 112 anos do seu nascimento na cidade da Praia. Lugar para onde o pai, natural do concelho de Caminha, imigrou como armador ascendendo posteriormente proprietário de uma possante companhia de comércio marítimo.

António Pedro de Paula Salvage da Costa fundou o Teatro Moderno em Portugal através do Apolo em Lisboa e do Teatro Experimental do Porto (TEP) mas foi na sequência da sua vivência e experiencia artística em Londres, Paris e Rio de Janeiro, que ficou conhecido como percussor em Portugal de vários movimentos estéticos, como o dadaísmo e o surrealismo. Este último influenciado pelas teorias psicanalíticas de Freud, que enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa.

Enquanto o dadaísmo, que surge em Zurique algumas décadas antes, tinha como propósito protestar contra a sociedade burguesa da época com obras baseadas no acaso e na desordem de elementos com pouco valor, o surrealismo tinha como objetivo produzir contrariando uma arte que então estava a ser destruída pelo racionalismo. Os surrealistas rejeitavam a chamada ditadura da razão e dos valores burgueses. Humor e a contra logica são os recursos utilizados por esta nova ordem.

Em 1933 ruma a Paris, estuda na Sorbonne tendo, em simultâneo e em academias livres de desenho, trabalhado com o meio artístico e intelectual surrealista. Participou ainda no Salão dos Independentes acabando por assinar o manifesto do dimensionismo, com Duchamp, Kandinsky, Picabia, Miró, entre outros.

Em meados da II grande guerra, encontra-se em Londres como crítico de arte mas logo tornar-se ávido e acérrimo colaborador aos microfones da BBC. Quer como locutor quer como cronista é a voz anti nazista dos portugueses que recusavam a propaganda oficial daquele regime.

Depois dos poemas ‘dimensionais’ em Paris 1935, vai para o surrealismo seguindo a linha coerente da sua personalidade. Embora de raiz intelectual o seu dimensionismo já aparecia como uma tentativa de libertação de valores abstratamente estéticos e como prenúncio de uma atitude ética perante a vida. Através de uma aproximada compreensão do fenómeno artístico ainda em Londres participa com Man Ray, Giacometti, Max Ernst e Magritte na exposição Surrealist Diversity na Arcade Gallery.

De volta a Lisboa integra diversas exposições através das quais cedo se torna um marco introdutor da ação modernizadora estética no seu país. Dirigiu a revista de vanguarda Variante. Tentou ainda reatar a interrompida e tradicional Orfeu.

Em simultâneo surge nos horizontes culturais portugueses o surrealismo através de ‘experiências literárias automáticas’ realizadas por António Pedro e alguns amigos e expõe com Dacosta e Pamela Boden. Esta exposição reuniu 10 pinturas de Dacosta e 16 de Pedro 6 esculturas abstratas de Boden, irrompendo-se assim através dela o surrealismo de que se falava ate então tão vagamente, desde 1924. Abria-se agora a pintura nacional para outros horizontes que ali polemicamente se definiam.

As suas obras revelam um universo imaginário e vigoroso. Evidencia-se mesmo a desproporcionalidade deliberada das figuras. Dimensões disformes e volumosas vêm acentuar a marca surrealista das suas obras. As suas obras essenciais são Dança de roda (1936) Rapto na Paisagem Povoada (1941) e Tríptico solto de Moledo (1943), infelizmente grande parte da sua obra como pintor perdeu-se aquando dum incêndio no seu atelier.

Fundou conjuntamente com Tomaz de Mello a primeira galeria de arte moderna na rua Serpa Pinto — ao Chiado, onde apresenta a primeira exposição de Vieira da Silva e tornando-se assim o catalisador da mudança de rumo da terceira geração dos pintores portugueses ao provar-lhes sem proselitismos, que necessitavam de desviar-se do trilho neo-realista recentemente assumido. Foi essa mudança de rumo que desencadeou todo o processo de abstractização seguinte. Foi também António Pedro quem escreveu o único ensaio estético moderno, ‘Introdução a uma Historia de Arte’.

Poeta visionário do teatro moderno cujo nome está indelevelmente associado não só ao TEP mas também ao teatro Apolo que dirigiu durante vários anos. Viveu à frente do seu tempo procurando sempre desenvolver uma estética teatral inovadora. É sem sombra alguma um dos maiores encenadores de todo o sempre, um Homem do campo, praia e da cidade, de Moledo do Minho e do mundo. Foi António Pedro um vanguardista preso ao cheiro da terra e um nacionalista literário inteiramente liberto da atitude histórico-sentimental.

Em 1952 abandona Lisboa para se instalar definitivamente na sua residência de família em Moledo do Minho — Caminha, onde se dedica a diversas atividades entre elas a pintura e a cerâmica. Viveu na praia de Moledo até 1966. Ativo e dinâmico imparável, sempre estímulo do debate de ideias. Segundo Eduardo Lourenço: ‘(…) é no Proto-poema da Serra d’Arga que António Pedro dá discurso ao humor corrosivo, adequado à ilustração do carácter intrinsecamente monstruoso da existência. Universo nascido de uma mítica explosão de Deus (no despique entre a rã e o boi-Deus foi Deus quem rebentou) e da sua Serra d’Arga parece saído de uma tela feita a meias por Bosch e Goya a que presidisse em vez de um crucificado um Gargântua darwiniano obcecado’:

Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou

E Ficaram pedras e pedras nos montes à custa da fábula

………..

O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Rapto na Paisagem Povoada 1946 Óleo sobre Tela Coleção Fundação Calouste Gulbenkian.

Frequentemente esquecido o romance ilustrado Apenas uma Narrativa abra o mundo das letras ao universo surrealista português, usando vários princípios fundamentais do surrealismo para construir uma viagem cujo propósito é fazer uma ponte sobre o abismo que separa a nossa perceção das nossas representações.

Stabat Dança de Roda 1936, Óleo sobre tela, Colecção José-Augusto França.

A aventura do herói inicia-se no domínio da realidade, começando pela descrição da paisagem do rio Minho, mas logo se vai dissipando pela intenção de progressivamente evocar o inconsciente.

Por influência de André Breton, a tentativa geral desta obra séria propor uma alternativa ao raciocínio lógico prevalecente na época. Não só é alcançada através de uma matriz surrealista, mas também através da semiótica das suas ilustrações e do uso do conceito freudiano de inquietante.

Conceito este que se refere a algo que não é propriamente misterioso mas estranhamente familiar. As viagens experimentais do protagonista estão localizadas na intersecção entre a realidade externa e o mundo interno o que desafia a uma transformação interior do herói da história.

Superando estas metamorfoses consecutivas ou este aparente caos, Just a story, reeditada há cinco anos em Londres, acaba por atingir a harmonização. A visão de António Pedro é apresentada em livro através das referências compartilhadas entre as ilustrações cénicas e o texto, eliminando barreiras.

A figura do plantador Adão sugere uma apologia ao surrealismo provocando no leitor uma exaltação do universo interior acrescentando nesta viagem as referências pessoais e a experiência internacional de um autor comprometido com o seu país, claramente, com a sua terra minhota;

“…mostrou-me dois lados dum Portugal a que irremediavelmente pertenço, como as árvores”.

O grande impulsionador do teatro experimental em Portugal e, como se não bastasse, um exímio e diversificado vulto nacional a quem muito deve a Cultura Portuguesa! Precisamos que o Alto-Minho e Portugal não esqueçam e lhe sigam o exemplo para o progresso do país e humanismo primordial à sociedade dos dias atuais.

Em síntese, foi decisivo para o desenvolvimento da arte em Portugal pelos movimentos inovadores que importou e recriou da Europa.

Gonçalo Sampaio e Melo
Psicólogo

Popular Articles